Horário de Brasília

00:00:00

17/11/20

Belo artigo de Adriana Araújo, acadêmica titular da AIAB


Olhar e não enxergar

Quanta coisa se olha e não se quer enxergar; e quanta coisa se enxerga, porém não se quer olhar?

Vivemos uma dualidade de contrastes, de sentimentos, de medos, de angústias e de olhares. Essa dualidade tem se tornado comum, uma realidade na vida de muitas pessoas. Cada vez mais se percebe o quanto a cegueira tem ganhado espaço no mundo dos videntes e o quanto, quando se quer, se pode enxergar mesmo não tendo como olhar.

Os reflexos dessa cegueira têm se observado em muitos momentos e situações.  Os cegos estão por todas as partes; nas calçadas quando fazem suas caminhadas, nos semáforos quando guiam suas caixas velozes, nos mercados, carregando suas sacolas repletas de guloseimas e tudo o mais que se consegue ou não comprar. Nas suas caixas verticais e horizontais que abrigam videntes e não videntes.

O que estamos vivenciando, remeteu-me à grandiosa obra de José Saramago ‘Ensaio sobre a cegueira’ que diz “Por que foi que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”.

Existem vários tipos de cegueira e elas estão por toda parte . Somos cegos ao cruzarmos todos os dias com inúmeras pessoas que são consideradas “invisíveis”. Pessoas que limpam nossas calçadas, recolhem o nosso lixo, deixam o ambiente, onde vivemos, limpos e cheirosos, cuidam dos jardins. E por que são invisíveis? Invisíveis aos olhos de alguns que passam por essas pessoas como se elas não existissem ou simplesmente fizessem parte da paisagem. No entanto, esses “invisíveis” também são seres humanos, têm dificuldades, dores, necessidades, mazelas como qualquer um de nós. Infelizmente, poucos dão importância para o trabalho digno e fundamental que cada um deles exerce.

Invisíveis que ao sumirem da paisagem, sinalizarem um descuido, um abandono de tarefas, ausentarem-se, mostram-nos aquilo que insistimos em não enxergar: que os invisíveis existem, são muito visíveis, nós é que não os enxergamos e não nos damos conta que eles fazem muita falta.

Agora, nesse momento de pandemia, surge um novo grupo de cegos que insiste em não enxergar o inimigo que apesar de ser invisível, a todo instante dá provas do quanto está vivo, é visível e pode ser cruel.

Assim como os muitos “invisíveis” que cruzam nossos caminhos, este invisível também tem cruzado o nosso dia a dia, porém de maneira terrível. Entra sorrateiramente nas nossas casas, traiçoeiramente ataca famílias, rouba o que temos de mais precioso e devasta tudo num descuido ou piscar de olhos.

Apesar de ele insistir em se mostrar, mesmo estando invisível, e nos cutucar com seu dedo longo e provocativo, aponta “Você pode ser o próximo”; persistimos em nossa ignorância, fazemos cara feia, olhamos de soslaio, damos as costas, saímos de fininho e fingimos que não é conosco. Assim, o invisível simplesmente diverte-se, invade espaços, passeia livremente pelo ar, impregna-se nas mãos de quem teima em agarrá-lo e viaja até na sola dos sapatos de quem insiste tentar marcar um encontro com ele na esquina; muitos fecham os olhos para o perigo, para a ameaça que os ronda.

As proteções que poderiam ajudar contra o invisível são banalizadas, ridicularizadas. As máscaras viram barbas, babadores, tiaras e até enfeites de orelha.  As consequências são sentidas, vistas, porém não enxergadas. O invisível é subestimado.  E assim, no auge da ignorância, desprezando ainda mais a existência do invisível, aqueles que veem mas não querem enxergar, reúnem-se para beber, comer, conversar, abraçar-se como se tudo isso fosse invenção do olhar, do imaginário. Com isso, negam os acontecimentos e até mesmo a si próprio. Os olhos estão abertos, porém fechados para a consciência, a empatia, a sensibilidade, o respeito ao próximo.

 Quanta cegueira junta viaja por aqui e por acolá. O invisível é cruel, porém mais cruel ainda é a ignorância daqueles que veem e não querem enxergar. A cegueira aparece como uma epidemia e vai acometendo um por um a cada dia.

E mais uma vez, retomo José Saramago “O pior cego é aquele que não quer ver”.

                                                                                                                                                                                                                              Por Adriana Araújo, escritora.    


Um comentário:

Obrigada por comentar.