Olhar e não enxergar
Quanta coisa se olha e não se
quer enxergar; e quanta coisa se enxerga, porém não se quer olhar?
Vivemos uma
dualidade de contrastes, de sentimentos, de medos, de angústias e de olhares.
Essa dualidade tem se tornado comum, uma realidade na vida de muitas pessoas.
Cada vez mais se percebe o quanto a cegueira tem ganhado espaço no mundo dos
videntes e o quanto, quando se quer, se pode enxergar mesmo não tendo como
olhar.
Os reflexos
dessa cegueira têm se observado em muitos momentos e situações. Os cegos estão por todas as partes; nas
calçadas quando fazem suas caminhadas, nos semáforos quando guiam suas caixas
velozes, nos mercados, carregando suas sacolas repletas de guloseimas e tudo o
mais que se consegue ou não comprar. Nas suas caixas verticais e horizontais
que abrigam videntes e não videntes.
O que
estamos vivenciando, remeteu-me à grandiosa obra de José Saramago ‘Ensaio sobre
a cegueira’ que diz “Por que foi que cegamos, não sei, talvez um dia se
chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não
cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”.
Existem vários
tipos de cegueira e elas estão por toda parte . Somos cegos ao cruzarmos todos
os dias com inúmeras pessoas que são consideradas “invisíveis”. Pessoas que
limpam nossas calçadas, recolhem o nosso lixo, deixam o ambiente, onde vivemos,
limpos e cheirosos, cuidam dos jardins. E por que são invisíveis? Invisíveis
aos olhos de alguns que passam por essas pessoas como se elas não existissem ou
simplesmente fizessem parte da paisagem. No entanto, esses “invisíveis” também
são seres humanos, têm dificuldades, dores, necessidades, mazelas como qualquer
um de nós. Infelizmente, poucos dão importância para o trabalho digno e
fundamental que cada um deles exerce.
Invisíveis que
ao sumirem da paisagem, sinalizarem um descuido, um abandono de tarefas, ausentarem-se,
mostram-nos aquilo que insistimos em não enxergar: que os invisíveis existem, são
muito visíveis, nós é que não os enxergamos e não nos damos conta que eles
fazem muita falta.
Agora, nesse
momento de pandemia, surge um novo grupo de cegos que insiste em não enxergar o
inimigo que apesar de ser invisível, a todo instante dá provas do quanto está
vivo, é visível e pode ser cruel.
Assim como os
muitos “invisíveis” que cruzam nossos caminhos, este invisível também tem
cruzado o nosso dia a dia, porém de maneira terrível. Entra sorrateiramente nas
nossas casas, traiçoeiramente ataca famílias, rouba o que temos de mais
precioso e devasta tudo num descuido ou piscar de olhos.
Apesar de ele
insistir em se mostrar, mesmo estando invisível, e nos cutucar com seu dedo longo
e provocativo, aponta “Você pode ser o próximo”; persistimos em nossa
ignorância, fazemos cara feia, olhamos de soslaio, damos as costas, saímos de
fininho e fingimos que não é conosco. Assim, o invisível simplesmente
diverte-se, invade espaços, passeia livremente pelo ar, impregna-se nas mãos de
quem teima em agarrá-lo e viaja até na sola dos sapatos de quem insiste tentar
marcar um encontro com ele na esquina; muitos fecham os olhos para o perigo,
para a ameaça que os ronda.
As proteções
que poderiam ajudar contra o invisível são banalizadas, ridicularizadas. As
máscaras viram barbas, babadores, tiaras e até enfeites de orelha. As consequências são sentidas, vistas, porém não
enxergadas. O invisível é subestimado. E
assim, no auge da ignorância, desprezando ainda mais a existência do invisível,
aqueles que veem mas não querem enxergar, reúnem-se para beber, comer,
conversar, abraçar-se como se tudo isso fosse invenção do olhar, do imaginário.
Com isso, negam os acontecimentos e até mesmo a si próprio. Os olhos estão
abertos, porém fechados para a consciência, a empatia, a sensibilidade, o
respeito ao próximo.
Quanta cegueira junta viaja por aqui e por
acolá. O invisível é cruel, porém mais cruel ainda é a ignorância daqueles que
veem e não querem enxergar. A cegueira aparece como uma epidemia e vai
acometendo um por um a cada dia.
E mais uma
vez, retomo José Saramago “O pior cego é aquele que não quer ver”.
Por
Adriana Araújo, escritora.
Belo texto!
ResponderExcluirParabêns escritora Adriana Araújo.
Att
Alessandra Alexandria